sexta-feira, 5 de julho de 2013

Sobre os acontecimentos estranhos ocorridos no Brasil na década de 2020

Varsóvia, 5 de fevereiro de 2056

Sobre os acontecimentos estranhos ocorridos no Brasil na década de 2020.

Em retrospecto, vejo  que demoramos demais para perceber.

Os primeiros a notarem o fenômeno foram, curiosamente, os vendedores de Finasterida. Ao passo que os clientes fiéis prosseguiam com o tratamento e atribuíam sua opulência capilar ao comprimido e creme milagrosos, novos adeptos escassearam lentamente; teimosamente, seus bulbos capilares pareciam cada dia mais vigorosos, numa combinação anormal e absolutamente dissonante com o estilo de vida típico dos pré-calvos – o alcoolismo de fim de semana, a pança perfeitamente elíptica, o cabelo desgrenhado e seboso – o conjunto que clama aos céus por uma calvície digna, para assim restaurar um mínimo de honra ao caboclo infeliz.

O júbilo de uns significou a ira doutros: os mencionados vendedores, a começar pelos menores, de porta-em-porta, começaram a sofrer o impacto do fenômeno – não havia novos pacientes. Nas reuniões de boteco e convenções semestrais, a insatisfação recrudescia, e começavam os murmúrios revoltosos – “isso tem dedo do governo...”, sussurravam alguns, “a gente precisa exigir uma indenização! É o nosso direito!”, diziam outros, mais exaltados.

O problema tomou tal proporção que, alguns meses depois, chegou ao nível mais alto da hierarquia de produtos capilares – o poderoso complexo industrial fármaco-cosmético. A alta e baixa deputância foi convocada, reuniões secretas em Brasília foram realizadas; favores foram relembrados. Após semanas de tensão, o Congresso Nacional aprovou a hoje infame desoneração fiscal para produtos capilares. Todos respiraram aliviados.

A medida inicialmente passou desapercebida pela população, que só tomou conhecimento da mesma por meio de uma entrevista de quarenta segundos onde sua excelência o Ministro da Saúde Capilar da Família citou os benefícios para a auto-estima da sociedade, esclarecendo ainda que a proposta integra uma seção pouco conhecida mas muito importante do PAC – o PAC Capilar. Em seguida o jornal exibiu alguns velhos ranzinas de comb-over, apresentou alguns gráficos de coluna e encerrou a matéria – i.e., tudo nos conformes.

Mas o ano seguinte era de eleição presidencial – garantia de grandes descobertas escandalosas por vários meses. Infelizmente, o primeiro grande escândalo da série foi justamente a mega-operação da Polícia Federal, Cachinhos Dourados, investigando casos de quebra de decoro, abuso de poder econômico e abuso de poder político relacionados à desoneração fiscal.

Foi o estopim de algo muito maior, o estopim do fenômeno.

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Nas semanas que se seguiram, incontáveis entrevistas do caso traziam um fato curioso no discurso, inicialmente relevado como factóide: os réus juravam por Deus e pelo mundo que a medida foi necessária porque as pessoas não estavam mais perdendo os cabelos. Apesar das gargalhadas iniciais (a “desculpa” rapidamente virou piada de bar), investigadores e a própria sociedade começaram a prestar mais atenção na capilaridade alheia. O escândalo morreu por algum tempo, mas ressurgiu meses depois: um funcionário do Senado sorrateiramente apoderou-se dum fio de cabelo dum membro da casa, ele próprio de pouca fama, mas conhecido pela notória calvície de seus progenitores do gênero masculino, todos também senadores. O funcionário, que fez questão de se manter anônimo, encaminhou o bulbo a um laboratório independente. Este fez a tenebrosa e magnífica constatação: as células capilares do quarentão não poderiam pertencer a um homem de mais de 25 anos de idade!

A partir da descoberta fantástica, o caso ganhou proporções recrudescentes. À basta densidade capilar somaram-se aos poucos outros fatos curiosos: das mulheres os peitos não caíam mais, dos fumantes o pigarro cessou. A cada ano que se passava, as pessoas contraíam menos gripe. Clínicas particulares fecharam, e hospitais gradualmente faliam por falta de pacientes. Documentários sobre a incrível saúde brasileira eram filmados pela National Geographic, e o documentarista Michael Moore percorria o Brasil atrás de instalações do SUS – “[os hospitais públicos brasileiros] são dez vezes mais eficientes que um hospital americano. Enquanto no nosso país os Republicanos continuam a insistir no modelo falido de abrir novos hospitais, por aqui se fecham hospitais, tamanha a eficiência da medicina socializada.”, declarou numa entrevista à CNN.

Um dia após a divulgação dum paper onde pesquisadores brasileiros comprovaram a regeneração celular “miraculosa” em pesquisada em território nacional, a Bolívia fez uma reclamação oficial ao Mercosul, exigindo devolução de um terreno litigioso na fronteira com o Brasil. Os Estados Unidos repudiaram a decisão do Itamaraty de não aceitar a proposta de eliminação recíproca de vistos entre os países - o presidente americano disse estar “surpreso” com a “quebra da tradição democrática brasileira” e Bill Clinton fez uma “viagem diplomática” ao Rio de Janeiro.  O imenso fluxo de imigrantes entrando no país causou desconforto nos nativos, eventualmente levando a uma quota de apenas mil vistos anuais regulares e outros 100 mil vistos especiais, sujeitos ao novo regime tributário (pagamento à União de 100% do valor dos bens trazidos do exterior). Com pedidos de vistos em baixa desde a imposição da nova quota, o governo comemorou o sucesso da medida.

Prevendo o fim da necessidade da aposentadoria pública e consequente aumento de verba disponível no orçamento da União, o governo federal criou 40 novos ministérios (a maioria ocupada por ex-donos de hospitais) e lançou 10 novos PACs (dos quais nenhum foi concluído integralmente até hoje). Alguns diziam, jubilosos, que o futuro havia chegado ao eterno país do futuro; outros declaravam que o futuro jamais desceria ao Brasil, pois o país agora definitivamente estacionou no presente.

***

O Brasil mudou em quê?, pergunta o leitor. Para minha grande surpresa, e imagino que também a do leitor – nada. Absolutamente nada.

Semana passada, o ex-presidente e atual senador Lula (111 anos) brincou numa entrevista: “pra quê mandato de 4 anos? Antigamente fazia sentido, aquilo acabava com o cara. Hoje em dia eu saio do plenário direto pro futebol society – e ainda faço gol, viu? Heheh! [gargalhadas do entrevistador]”. Gilberto Gil (114 anos) comemorou os 40 anos de legalização da maconha com um show beneficente na praia de Ipanema (ingresso: doação de 1 baseado para crianças carentes da periferia de Salvador). A novela adolescente Malhação continua com atores quarentões. Boris Casoy voltou à ativa, e à noite repete o bordão adaptado: “isto AINDA é uma vergonha!”. O MEC divulgou em nota oficial que irá refazer o Enem 2056. As manchetes dos noticiários exibem greves, pneus queimados em rodovias, propagandas cafonas e entrevistas com atores de terceira categoria.

Ou seja, para todos os efeitos, o Brasil, em sua grandiosidade, passou incólume ao maior acontecimento humano dos últimos 2000 e tantos anos. Invejado e cobiçado nos primórdios do fenômeno, foi gradualmente esquecido pelo noticiário internacional. A única menção ao país no New York Times desta semana é de um surto de dengue na baixada fluminense.


E eu, por quê rejeitei o Elixir da Juventude? Ora, não é este o mesmo cobiçado há milênios por todos os povos do mundo? Não! – soubessem os antigos alquimistas que sua preciosa descoberta seria condicionada a uma vida num oceano de cartórios, greves, Cachinhos Dourados e novelas das oito, renunciariam à magia e sairiam correndo rumo à primeira igreja que encontrassem! Eu, leitor, creio piamente numa idéia há muito abandonada – que tudo sob o Sol, para atingir a plenitude, tem de ter começo, meio e fim. Minha existência, assim como este relato, chega ao fim -  e assim, despedindo-me do leitor como despedi-me do Brasil há décadas, posso enfim descansar com a sensação de dever cumprido.