Varsóvia,
5 de fevereiro de 2056
Sobre os acontecimentos estranhos ocorridos no Brasil na
década de 2020.
Em retrospecto,
vejo que demoramos demais para perceber.
Os
primeiros a notarem o fenômeno foram, curiosamente, os vendedores de
Finasterida. Ao passo que os clientes fiéis prosseguiam com o tratamento e
atribuíam sua opulência capilar ao comprimido e creme milagrosos, novos adeptos
escassearam lentamente; teimosamente, seus bulbos capilares pareciam cada dia
mais vigorosos, numa combinação anormal e absolutamente dissonante com o estilo
de vida típico dos pré-calvos – o alcoolismo de fim de semana, a pança
perfeitamente elíptica, o cabelo desgrenhado e seboso – o conjunto que clama
aos céus por uma calvície digna, para assim restaurar um mínimo de honra ao caboclo
infeliz.
O
júbilo de uns significou a ira doutros: os mencionados vendedores, a começar
pelos menores, de porta-em-porta, começaram a sofrer o impacto do fenômeno –
não havia novos pacientes. Nas reuniões de boteco e convenções semestrais, a
insatisfação recrudescia, e começavam os murmúrios revoltosos – “isso tem dedo do governo...”,
sussurravam alguns, “a gente precisa
exigir uma indenização! É o nosso direito!”, diziam outros, mais exaltados.
O problema
tomou tal proporção que, alguns meses depois, chegou ao nível mais alto da
hierarquia de produtos capilares – o poderoso complexo industrial fármaco-cosmético.
A alta e baixa deputância foi convocada, reuniões secretas em Brasília foram
realizadas; favores foram relembrados. Após semanas de tensão, o Congresso
Nacional aprovou a hoje infame desoneração fiscal para produtos capilares. Todos
respiraram aliviados.
A
medida inicialmente passou desapercebida pela população, que só tomou
conhecimento da mesma por meio de uma entrevista de quarenta segundos onde sua
excelência o Ministro da Saúde Capilar da Família citou os benefícios para a
auto-estima da sociedade, esclarecendo ainda que a proposta integra uma seção
pouco conhecida mas muito importante do PAC – o PAC Capilar. Em seguida o
jornal exibiu alguns velhos ranzinas de comb-over,
apresentou alguns gráficos de coluna e encerrou a matéria – i.e., tudo nos
conformes.
Mas o
ano seguinte era de eleição presidencial – garantia de grandes descobertas
escandalosas por vários meses. Infelizmente, o primeiro grande escândalo da
série foi justamente a mega-operação da Polícia Federal, Cachinhos Dourados, investigando casos de quebra de decoro, abuso
de poder econômico e abuso de poder político relacionados à desoneração fiscal.
Foi o
estopim de algo muito maior, o estopim do fenômeno.
***
Nas
semanas que se seguiram, incontáveis entrevistas do caso traziam um fato
curioso no discurso, inicialmente relevado como factóide: os réus juravam por
Deus e pelo mundo que a medida foi necessária porque as pessoas não estavam mais perdendo os cabelos. Apesar das
gargalhadas iniciais (a “desculpa” rapidamente virou piada de bar), investigadores
e a própria sociedade começaram a prestar mais atenção na capilaridade alheia. O
escândalo morreu por algum tempo, mas ressurgiu meses depois: um funcionário do
Senado sorrateiramente apoderou-se dum fio de cabelo dum membro da casa, ele
próprio de pouca fama, mas conhecido pela notória calvície de seus progenitores
do gênero masculino, todos também senadores. O funcionário, que fez questão de
se manter anônimo, encaminhou o bulbo a um laboratório independente. Este fez a
tenebrosa e magnífica constatação: as células capilares do quarentão não
poderiam pertencer a um homem de mais de 25 anos de idade!
A
partir da descoberta fantástica, o caso ganhou proporções recrudescentes. À basta
densidade capilar somaram-se aos poucos outros fatos curiosos: das mulheres os
peitos não caíam mais, dos fumantes o pigarro cessou. A cada ano que se
passava, as pessoas contraíam menos gripe. Clínicas particulares fecharam, e
hospitais gradualmente faliam por falta de pacientes. Documentários sobre a
incrível saúde brasileira eram filmados pela National Geographic, e o documentarista Michael Moore percorria o
Brasil atrás de instalações do SUS – “[os
hospitais públicos brasileiros] são dez vezes mais eficientes que um hospital
americano. Enquanto no nosso país os Republicanos continuam a insistir no
modelo falido de abrir novos hospitais, por aqui se fecham hospitais, tamanha a
eficiência da medicina socializada.”, declarou numa entrevista à CNN.
Um dia
após a divulgação dum paper onde pesquisadores brasileiros comprovaram a
regeneração celular “miraculosa” em pesquisada em território nacional, a Bolívia
fez uma reclamação oficial ao Mercosul, exigindo devolução de um terreno
litigioso na fronteira com o Brasil. Os Estados Unidos repudiaram a decisão do
Itamaraty de não aceitar a proposta de eliminação recíproca de vistos entre os
países - o presidente americano disse estar “surpreso” com a “quebra da
tradição democrática brasileira” e Bill Clinton fez uma “viagem diplomática” ao
Rio de Janeiro. O imenso fluxo de
imigrantes entrando no país causou desconforto nos nativos, eventualmente
levando a uma quota de apenas mil vistos anuais regulares e outros 100 mil
vistos especiais, sujeitos ao novo regime tributário (pagamento à União de 100%
do valor dos bens trazidos do exterior). Com pedidos de vistos em baixa desde a
imposição da nova quota, o governo comemorou o sucesso da medida.
Prevendo
o fim da necessidade da aposentadoria pública e consequente aumento de verba
disponível no orçamento da União, o governo federal criou 40 novos ministérios
(a maioria ocupada por ex-donos de hospitais) e lançou 10 novos PACs (dos quais
nenhum foi concluído integralmente até hoje). Alguns diziam, jubilosos, que o
futuro havia chegado ao eterno país do futuro; outros declaravam que o futuro
jamais desceria ao Brasil, pois o país agora definitivamente estacionou no
presente.
***
O
Brasil mudou em quê?, pergunta o leitor. Para minha grande surpresa, e imagino
que também a do leitor – nada. Absolutamente
nada.
Semana
passada, o ex-presidente e atual senador Lula (111 anos) brincou numa
entrevista: “pra quê mandato de 4 anos? Antigamente
fazia sentido, aquilo acabava com o cara. Hoje em dia eu saio do plenário
direto pro futebol society – e ainda faço gol, viu? Heheh! [gargalhadas do
entrevistador]”. Gilberto Gil (114 anos) comemorou os 40 anos de
legalização da maconha com um show beneficente na praia de Ipanema (ingresso:
doação de 1 baseado para crianças carentes da periferia de Salvador). A novela
adolescente Malhação continua com
atores quarentões. Boris Casoy voltou à ativa, e à noite repete o bordão
adaptado: “isto AINDA é uma vergonha!”.
O MEC divulgou em nota oficial que irá refazer o Enem 2056. As manchetes dos noticiários
exibem greves, pneus queimados em rodovias, propagandas cafonas e entrevistas
com atores de terceira categoria.
Ou
seja, para todos os efeitos, o Brasil, em sua grandiosidade, passou incólume ao
maior acontecimento humano dos últimos 2000 e tantos anos. Invejado e cobiçado
nos primórdios do fenômeno, foi
gradualmente esquecido pelo noticiário internacional. A única menção ao país no
New York Times desta semana é de um
surto de dengue na baixada fluminense.
E eu,
por quê rejeitei o Elixir da Juventude? Ora, não é este o mesmo cobiçado há
milênios por todos os povos do mundo? Não! – soubessem os antigos alquimistas
que sua preciosa descoberta seria condicionada a uma vida num oceano de
cartórios, greves, Cachinhos Dourados
e novelas das oito, renunciariam à magia e sairiam correndo rumo à primeira
igreja que encontrassem! Eu, leitor, creio piamente numa idéia há muito
abandonada – que tudo sob o Sol, para atingir a plenitude, tem de ter começo,
meio e fim. Minha existência, assim como este relato, chega ao fim - e assim, despedindo-me do leitor como
despedi-me do Brasil há décadas, posso enfim descansar com a sensação de dever
cumprido.